domingo, 28 de abril de 2013

análise iconográfica de um retrovisor de ônibus


teu rosto enquadrado no
canto inferior direito do
espelho nítida a tua blusa
azul no mesmo tom da
cortina do motorista os
olhos lagos de ferrugem
congelados no horizonte que
não se mostra enquanto a
primeira luz da manhã sobre
a lagoa delineia incandescente
a curva da tua face direita
alheia aos riscos coloridos dos
carros que entram e saem
dos teus cabelos eurocêntricos

pensei em fazer uma fotografia
mas já não seria esse poema
uma imagem retida pra sempre?

do cair da noite


ainda viveremos esses belos anos
entre o sol e o sono mas o ocaso
se assoma no horizonte dos dias e
depois das cores esquecidas olharemos
as fotografias como um soldado que
voltou da guerra de onde não queria
nunca ter saído

o poema
qualquer poema nesses dias vindouros
será escrito por mãos carcomidas
através de olhos que já viram tudo
e já não se encantam mais por nada

talvez uma velha senhora
um cão um radinho de pilha
a poeira dos livros arruinados
serão uma última companhia
um último olhar para um mundo
que escurecerá para sempre
(vocês terão seus filhos o seu
trabalho aqui falo somente por mim)

as coisas serão pedaços concretos de
perda e a visão da juventude pesará
tanto que 10 homens serão necessários
para carregar nossos caixões até a cova

as frutas cairão dos galhos
a cidade se decomporá em mil
nuvens leves craqueladas de porcelana
e dos dias que houveram não
existirá mais qualquer memória viva
que não as dessas ruas onde sorrimos
bebemos e amamos com tristeza e fúria

definição de saudade:


quando
pela soleira da porta
atravessam meus olhos as
sandálias empoeiradas
que há um ano atrás
esqueci de devolver

anna karienina


me esquece florzinha:
sou sujo
ando magro barbudo
e
- terrível! -
tenho o dobro da sua idade

do amor enquanto raio (códex poético-profético da rua ceará)


sob a luz indecisa as
musas da calçada a pele
gordurosa de óleo bifásico

as musas nuas atrás das
grades sob luzes sanguíneas
que escorrem pelos guetos
cheirosos de vômito e urina

as musas tristes e lascivas os
peitos suados sobre as mesas
manchadas as vaginas cobertas
de pelos ralos e penumbra

casarões velhos lingerie e tatuagem:
cada lata de cerveja apaga uma
luz convulsiva que morre nas
poças agourentas do meio-fio

na imersão dos sentidos desregrados
as musas pitonisas me fazem a
suprema revelação: na noite viva da
vila mimosa tudo é dedicado ao sagrado

vinteequatro por segundo



morde a maçã branca de
neve mas teus olhos de
limo denunciam a soberba das
bandeirinhas coloridas que
acimam a cabeças das
babás pretas com uniformes
brancos e suas crianças brancas

o resto é rasto é rasgo no
perfume que fica na manhã de
domingo onde o centro da
cidade respira quieto e esconde os
salões escuros onde repousam
fotografias em preto e branco como
torres de alquimistas cegos

e

por falar em alquimia me
veio agora a lembrança dos
bailes funk da vila da penha que
nada mais eram laboratórios
alquímicos onde joãogabrielluis
descobriram a pedra filosofal na
fórmula das cervejas baratas
“na quatro por quatro a gente zoa
whisky e red bull e eu aqui a toa
o pau ficando dur...”

mas desfaço essa elucubração quando
as duas mocinhas se beijando no
hall do museu lançam uma granada de
fragmentação certeiramente dentro
da trincheira que construí a unha
entre escombros e sensibilidades

se morresse na explosão haveria
bandeira para enrolar meu cadáver na
volta pro meu país? haveria país?

na rua inodora o sol espeta o rosto com
mil agulhas e torna tudo em acrílico como
nas tvs de led que mostram as praças da
europa em full high definition e lançam
uma nostalgia do que não se viveu

e

já no meio do dia do bairro de
fátima uma bebida sozinho no
bar mais sujo serve como predição do
futuro enquanto nelson cavaquinho
agoniza em cima das mesas e
dentro dos sujos copos adamantinos um
quadro mofado de di cavalcanti me
me retribui o sorriso que lanço a ele

mas

o flerte com a puta pintada no quadro do
di se quebra quando o telefone toca e é
outraputa (dessa vez de carne e osso) com
quem poderia sanar essa minha
solidão dominical mas digo a ela que
hoje prefiro a companhia das faixas de
pedestre que prefiro ouvir a nessum
dorma das árvores da praça mahatma
gandhi enquanto o 247 passeio-méier
dorme docemente como os dormem
os mendigos salpicados de ultravioleta

moleques de rua espreitam as máquinas
fotográficas dos turistas japoneses que
tem um sorriso colado nas faces cor
de cremogema ralo sabor tradicional
enquanto penso que um único
amor pra vida toda é uma renúncia e
toda renúncia é prenhe de nobreza

no entanto

a nobreza de um homem nasce no
sangue e eu sempre tive sangue de
poeta vadio e sujo e doce que
desfia a renda dos ventos sudoestes no
cheiro de sexo que exala por baixo da
textura colorida das saias nas calçadas

a tela de penélope


quando ela chegou trazendo
as malas eu pude realmente
conhecer sua matéria que
antes existia apenas dentro
do motor lento da espera e
me surpreendi com suas
unhas pintadas como explosões
via-lácteas com o seu cheiro
de naftalina e com sua saliva
largando sob meu nariz um
odor de roupa mofada

ela chegou impondo suas
tristezas a sua insônia convulsa
nessa minha vida carinhosa mas
já sem nenhum amor possível

e a amei como quando era
jovem e temia a chegada da manhã
e a amei como quando era
jovem e suscetível a febres veraneias
a amei doce e triste como é o
meu amor: uma elegia tocando baixinho
num amadeirado gravador antigo

sexta-feira da paixão


quando ela reapareceu
alguns anos depois
se dizendo convertida ao
evangelho de cristo
dizendo “eu amo meu marido”
cuidando de um filho e
afirmando que está orando
todos os dias a deus por mim

eu pensei  “é... já vi que esta
estrela não brilhará mais
nesta constelação” o que é
uma pena já que a oração
que ela fazia antes disso
era muito mais sagrada
pra mim: de quando ela
me ligava as 3 da manhã
bêbada e perdida como sempre
falando o quanto ela se
odiava por me desejar e que
já estava no meu portão

deve ser por isso que agora
só sinto uma profunda tristeza
pelo que ela me tornou: agora a
seus olhos eu pareço um pobre
coitado que precisa de salvação:
antes eu era mais:
quando abria o portão seus olhos
eram um misto de admiração
e temor que faziam eu me sentir
belo e mau como o próprio diabo

lembranças de uma mulher descrita sobre a superfície lunar



o uniforme impecavelmente
branco quase deixa a mostra
os agudos bicos dos teus peitos
mas na manhã sonolenta você
nem percebe as carícias que minhas
retinas desferem nos teus braços
afogada que está em seu celular e
seus contatos eletrônicos

cofiando a barba olho a paisagem
do teu corpo e me sinto um
astronauta vagando na lua morna
e sentindo saudades da terra
onde caminhas com tuas pernas
estreitas e com os teus cabelos
de bailarina entre o motor e
o óleo diesel das 6 da manhã

de lá de cima entre
estrelas e crateras e através
de toda essa distância eu a veria
minunciosamente e nítida como a
vejo agora aqui ao meu lado