terça-feira, 28 de junho de 2011

Enigma


Se existem esses espaços
-por mais ínfimos que sejam-
entre meu corpo e as coisas
quem os cria?

Totentanz


Mal saímos do ventre e já
começamos a envelhecer.
Crescer amadurecer:
de que serve se tudo diminui o tempo?

Os prédios ruem as árvores caem e
meu corpo deitado nessa cama
-dentro de uma manhã que se dissolve-
um dia também se desintegrará.
E todos os afetos e experiências
das mais ínfimas as mais grandiosas
deixarão de existir comigo
como se nunca tivessem havido.

E mesmo agora
eu tenho certeza que
alguma vida se perde na solidão enquanto a
incontáveis anos-luz daqui uma
galáxia inteira se extingue.

Enfer


Pelas ruas escuras há
cartazes iluminados com a
fotografia em preto-e-branco de uma
atriz segurando um cigarro.

Seus olhos
-os olhos na fotografia-
vêem todas as horas dessas ruas sem
no entanto
participar de nenhuma delas.

O cartaz é realmente bonito.
A atriz com seu cabelo Lulu
me lembra Louise Brooks
-ferida de tanta beleza-
destruindo a minha vida numa
madrugada muda em 1929.

sábado, 11 de junho de 2011

Romantismos


Esse sábado as ruas estão
apinhadas de casais e
eu nunca soube por que esses dias
me consternam.
A proximidade do Dia dos Namorados enche
a cidade de outdoors que ensinam que
o consumo é a derradeira prova de amor.

Mas nada disso realmente importa.

Estou comendo um pastel de queijo
bebendo um caldo de cana num
boteco embaixo da estação de Madureira
onde o gerente tem o nariz derretendo e
coça interminavelmente o saco e o atendente
vez em quando
levanta a blusa para esfregar uma
vermelhidão na barriga.
Mas é Madureira e o lanche ali é delicioso.
Uma adolescente se debruça no balcão ao
meu lado e suas clavículas ossudas quase rasgando
seus ombros é um espetáculo tão
terrivelmente belo quanto um quadro de Caravaggio.
Ela pede uma garrafa d’água (é claro que
ela não comeria nada ali) e eu
limpo a boca e saio.

Minha cara refletida nas janelas dos
carros é a cara de um velho alquebrado e
penso naquele antigo armazém onde
as paredes são teia e pó
onde se respira um ar centenário e
entre guloseimas e pães
a mercadoria mais barata é a memória.

Um casal de estudantes se beijando e se
agarrando pela nuca (percebo que ela usa
aparelho nos dentes) me mostra que nunca
fui assim tão jovem e que
a partir de agora me faltará alguma estrada e
que esta é uma vida plena de impedimentos para
quem só sabe viver no amor.

Ao chegar ao apartamento
ao deitar na cama para escrever esse poema
já não é mais preciso a densidade da noite e
nenhuma ave negra na minha janela para que
eu tenha o meu inelutável nevermore.

Nênia


Amanhece no corpo como
amanhece nas cortinas amareladas.
Tudo dentro já acorda conflito e
se vão ao longe as jovens auroras
as ruas da infância calada
o beijo do primeiro amor...

Vejo uma ladeira sufocada de árvores
nessa manhã fosca de frio metálico onde
as casas dormem enquanto as
pessoas descosem suas vidas nos pontos de ônibus.

Queria a manhã dessas casas
a carne dessas árvores resistindo ao concreto
queria o tempo da lesma o
tempo do caracol na sua monástica vontade de
não alcançar
do que ser esse homem que vive charfundando
na angústia dos horários.

Tudo se corrompe no escorrer
lodoso dos anos e
um dia não mais estarei aqui:
não perscrutarei mais essas rachaduras do muro
(que amanhã já serão diferentes)
não assistirei as novidades do cinema e
nem verei a praia carcomer Copacabana.
Quantas pessoas lindas vão nascer (como
tantas antes de mim) e não as terei ao
menos roçando de leve no meu olho.

Meu olho que um dia estará podre
afundado e murcho em minhas órbitas
e tudo que eu vi esses anos todos
tudo o que capturei
estará eternamente irrecuperável...

Tanto mundo
o mundo inteiro no meu olho
estará dissipado na nulidade do pó.

Walpurgisnacht


Acabei de engolir umas cervejas e
por isso
entre o cinema Odeon e o teatro Rival eu
dou uma mijada.
A hora é fria e o chuvisco fino
parece alegrar as pessoas.
A juventude moderninha se acotovelando
na Cinelândia me enche de
profunda tristeza:
me flagro aos vinte e nove um
velho careta e low profile.

O Municipal se ergue imponente na paisagem
enquanto se dilacera de lado a lado a
carne das minhas sensibilidades:
contemplo corpos que se vendem e
suas bundas cheirando a lycra das
calcinhas minúsculas.
Vejo passarem por mim
dentro da dor da chuva
essas pernas de porcelana que são escarradas
dos vestidos pretos da noite.

E mesmo ali ainda não sei o
que me haverá:
um sorriso
um rosto parecido com
um esvaziado 1984 televisivo.
Fascinado quererei apreendê-lo
mas não conseguirei.

Tudo esta noite é um interdito total entre
meu corpo e o existir das coisas no mundo.

Divagação Poético-Debordiana


Duas senhoras no ônibus conversam
maravilhadas sobre as bodas da realeza inglesa.
Esse é o assunto do momento em
todos os noticiários...
Mas
que tenho a ver com esse tal
casamento real
eu aqui nesse ônibus lotado:
preto pobre professor do terceiro mundo?

Onde podem me interessar conceitos
anacrônicos de nobreza
se aqui no nosso país
os presidentes nos deixam a pão e água?

Não tenho mesmo a ver com
todo esse espetáculo anglo-saxão se
aprendi que na vida
os melhores momentos são os pequenos
que estão no nosso dia-a-dia...
esses que nunca saem nos jornais.