quinta-feira, 29 de outubro de 2009

De Volta P'ra Casa


Através do vidro de chuva do ônibus,
na luz amarela de chuva no asfalto,
pelo olhar da chuva nos faróis,
eu voltei...

Com a cabeça pesada
tombada sobre um punho cerrado,
quis ir até o ponto final,
quis ir até o final...
queria porque queria, que aquela viagem
não acabasse prematura.

Através do vidro embaçado, eu embacei...
quis chorar no vazio do ônibus.
Sexta-feira,
noite fria,
chuva,
Gal Costa no MP3...
Quis chorar.

Subir a rua vazia e todo ensopado,
foi tão etéreo e tão bom,
foi quase como morrer.
Tão etéreo e tão bom:
uma rua escura e deserta,
a luz amarela nos paralelepípedos molhados,
e no ouvido a Gal cantando só p’ra mim:
- Eu te amo!

Quase como morrer...

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Dia de Outubro



Arde um sol azul e amarelo,
parece um dia de verão que se perdeu
no meio da primavera,
e me flagro percebendo que já começam a reaparecer
antigas ânsias do mundo.
Tudo se esvazia novamente,
olho em volta e a realidade se incompleta aos pouquinhos,
como um quebra-cabeças que vai se desmontando lentamente,
indo vagarosamente do ser ao nada...
Talvez viver seja isso:
querer esse algo que sempre nos escapa,
passar os anos sem ter fundo,
nunca conseguir se bastar com coisa alguma.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

desperta
segunda-feira:
chuva nos tons escuros
cortina voando
cachorro dormindo

café p’ro trabalho
duas colheres:
uma de açúcar
outra de
tédio

música
p’ra acordar movimentos
p’ra adormecer
tristezas

em cinza a
semana adentra
e
eu
afora

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Lullaby (a partir de uma discussão freudiana)


Em um daqueles nossos sábados azuis
tocou The Cure no rádio do carro dela
e aí eu disse:
“Taí uma música deprê
uma música pra cortar os pulsos...”

E ela com aquele sorriso malicioso de moleque
-aquele apocalipse de 6 ou 7 segundos-
respondeu:
“Que nada! Essa música é boa
pra outra coisa...
essa música é boa pra foder!”

E naquela noite acabamos transando ao
som do Cure...

Hoje
3 anos depois de tudo
no meio de uma madrugada que não dorme
essa música me pega de surpresa no rádio
e a memória do desejo adensa de
nostalgia a hora.

Eu tenho certeza de que ela não está
escutando essa música agora
mas se a conheço bem nesse
instante ela deve estar trepando por aí.

Antes éramos nós dois nossa canção
e o nosso prazer
mas como sempre acontece
quando acaba
as mulheres sempre se dão melhor:
eu termino ficando só com as canções e
elas vão encontrar outros prazeres...

Bem...
pelo menos mantive o Status Quo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Malabares


Malabarista do trânsito toda sujinha
seu cabelo em pé
o rosto mal pintado e
a tinta escorrida de suor lhe
empresta essa cara de palhacinho triste.

No sinal fechado se
abre a janela do carro lustroso e
eis que se arquiteta a imagem:
pelo vão se debruça uma outra menininha
só que dessa vez de porcelana
(seu pai não aparece através do vidro escuro)
e que tem a mesma idade que a malabarista
mas no entanto não a convida para brincar de boneca
não desce do carro para aprender esse
divertido truque de bolas da malabarista:
tudo que ela faz é lhe entregar o cachê do show
e ir embora.

Elas poderiam ser amigas de escola
mas ali
entre os carros fugazes da Avenida das Américas
não há infância possível para a malabarista
tudo reafirma a impossibilidade dela partilhar a
mesma realidade da menina que se foi no carro.

E ela vai continuar sua arte
(que é mais de sobreviver do
que circense)
até que se extinga sua inocência e
o seu caminho mude ou termine.

Estranhamente como um símbolo de tudo
me vem o pensamento de que
a malabarista não dançará seus
15 anos de sapatinhos novos
o seu quinhão
será sempre aqueles pés descalços
enegrecidos menos pela sua cor
do que pela sujeira e pelo asfalto quente.

domingo, 18 de outubro de 2009

Rito de Solitude


As mulheres cortam os cabelos.

Limpar o quarto nos domingos de
manhã tem o peso de um ritual.
Arrumar o armário tem suavemente
a melancolia das coisas que mudam
abrir as gavetas é trazer a tona
coisas esquecidas
cartas e fotografias e poemas e lembranças
que sempre voltam a deixar de existir na
desmemória das gavetas fechadas.

E no rádio a Bethânia cantando
algumas verdades insuportáveis.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Desencanto


Todo dia pela manhã a mesma
cara no espelho que a sonolência
nem me deixar ver.
Todo dia à noite o mesmo filme que
o cansaço só me permite ver os
primeiros vinte minutos.
No intervalo disso se tem
o mesmo trabalho:
um expediente inteiro de tédio.

Todo dia essa atrocidade
inabalável do cotidiano.

No ônibus pela manhã
Bukowski me diz que a vida é
uma merda portanto
aceite essa bosta:
caia nas orgias e se embebede
até morrer.
Mas a noite na cama
Schopenhauer também me
diz que a vida é uma merda
porém devemos nos elevar:
sejamos um santo ou Buda.

Sinceramente não sei o que fazer...

Pelo menos eu concordo com
os dois no fato de que a
vida é realmente uma merda.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O Mar


Hoje fui ver o mar.
Precisava da experiência do mar.
O mar é indizível
o mar não se importa com os homens
o mar nem sabe dos homens...

Nele tudo é apenas força
força imensa quebrando na terra desde
antes de qualquer possibilidade de memória.

É por isso que quando a onda se
choca contra o meu peito
ela impregna o mar em mim
prende em meus poros suas partículas
invisíveis de água e sal
e é como se eu passasse a carregar no corpo
essa divindade antiga e azul através dos
cinzas desgastados do subúrbio.
É como se eu trouxesse em mim
um pouco de oceano p’ra casa.