segunda-feira, 29 de junho de 2009

A Lapa de Fevereiro


É no meio da madrugada,
na dissipação da embriaguez,
que as coisas perdem o sentido.
O mundo se torna mais real, mais concreto,
e portanto mais pesado.

O casarão,
os amigos na pista escura,
e eu na sacada tentando despir meus vários tipos de cansaço.
A chuva acoberta o carnaval,
e os arcos se desbotam alheios à luz laranja da Mem de Sá.
Na varanda ao meu lado pessoas chegam e saem,
enquanto eu mastigo imobilidades.

Primeiro, a moça elegante em seu vestido branco:
o céu escuro vigiando sombrio um carnaval esquisito,
os arcos e arabescos do casario antigo esvaziando os pensamentos.
Segundo, de blusa aberta, um rapaz embriagado:
os pingos espaçados e grossos,
a multidão eufórica enquadrada entre dois galhos de árvore.

Terceiro, um animado casal de lésbicas:
eu abraçado à coluna,
a mente esburacada, entregue a desvãos,
e elas me perguntando se estou triste.

Quarto, a linda morena, mais uma dor de carnaval:
a miríade de impressões flutuando entre as pessoas,
e eu me afogando no querer ser tudo,
deslizando todo em sensação no reflexo prata
das enlameadas pedras portuguesas.

E ali, pelo menos naquelas horas, eu senti um sinal do esvaecer...
senti uma espécie de desgosto de uma das coisas que mais louvo:
eu amarguei uma crise na fé que só encontro na imersão profana do carnaval...

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Repousam agora na lembrança aquelas noites de sábado em que nem amigos nem amantes eu era um masoquista no quarto construindo versos natimortos eu me embriagava da melancolia tragada no copo da solidão eu queria os sons que soavam distantes através da janela eu queria as luzes e o cheiro da noite eu queria as meninas de vestido bêbadas e a alegria dos amigos reunidos mas só tinha a força da adriana calcanhotto tocando no rádio de repente e potencializando tudo o que era sensação transbordando a atmosfera do quarto de desejo dos amores passados (e dos que nunca puderam) eu ficava esperando uma voz ao telefone uma chamada no messenger que nunca vinha e me masturbava com os mesmo filmes e voltava a arquitetar poemas suicidas e me flagrava como um solitário por vocação que portava uma carência quase patológica e passava a madrugada comendo e abrindo a geladeira de 15 em 15 minutos e morrendo de medo do escuro da sala e da escada e morrendo de medo de ser doentio tudo isso que eu sentia e fazia tudo isso que eu era mas o que mais me frustrava era dormir mais uma noite dessa vida medíocre sem haver qualquer possibilidade de alegria e/ou amor e/ou sexo e tudo era pesado tudo carregava uma densidade estranha igual a da casa de um velho viúvo que agora só espera o sono derradeiro chegar e no entanto eu sabia que isso se dava porque ali eu era eu mesmo com todas as forças e em absoluto por isso toda essa angústia por isso toda essa melancolia pois nasci repleto de um querer absoluto que subjuga o tempo todo os meus olhos que me vende sensações sem remédio e é um caminho sem volta anestesiar isso com a poesia que também é fuga que também é aprisionar uma partícula de tempo para amenizar uma falta porque a saudade nada mais é que um desejo correndo atrás no tempo e quando se deseja se é plenamente e eu que desejo todo o tempo me sinto completamente sem cessar e ser assim é ter preso a carne e ao âmago a consciência de que estar na existência é um fardo que a maioria dos homens carrega sem saber.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Um Sopro Uma Vela Acesa


O mais triste nesse mundo de
infinitas eras é ser apenas uma
molécula fadada a conhecer
meia dúzia de séculos.

Nunca alguém
(nem os maiores nomes da história)
foi alguma coisa para o mundo e
nem o será algum dia.
E eu então?
O que faço de mais nobre na
vida é criar um punhado de versos...
o que faço de mais nobre na vida
nunca vai me tornar outra
coisa além desse grão que já sou.

Nessa época de arquivos digitais e
computadores o meu neto nunca
achará o bauzinho do avô com
os poemas para a vovó
(e nem aqueles amarelados para as
primeiras namoradas).
A não ser pelas fotografias meu
neto nunca saberá de mim dentro dele
como eu nunca soube do meu avô em mim.

Cada vida é uma pegada na areia
e o tempo é um deserto onde
o vento não pára de soprar.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Da Vida Que Nós Perdemos


Em dias cotidianos
tudo me transborda:
pessoas carros barulhos e tédios...
o ideal era nunca ter que trabalhar.

Queria mesmo era ser as
manhãs das casas envelhecidas
queria estar na madeira desgastada das
janelas sonolentas das
ruas melancólicas.
Estar sob os pêlos do cão que
dorme sobre o musgo do
cimento rachado do quintal vazio
estar sentado na cama da menina que
troca de roupa num quarto que
pulsa dentro da claridade branca das
primeiras horas matutinas.

Queria todo dia a lentidão de um domingo:
raios de sol furando as árvores
escorrendo pelos tetos dos
postos de gasolina
lambendo a umidade do paredão das
casas arruinadas sob um cobertor de
luz que não existe em dia de semana.

O ideal era nunca ter que trabalhar...

terça-feira, 16 de junho de 2009

O Destino do Balão


As pessoas no ponto de ônibus são
como manequins absortos na espera da
sua condução que nem
notam um balão fazendo ciranda a seus pés.
Como é triste o balão de aniversário laranja
rolando através trânsito absurdo da
Presidente Vargas!

Será que o balão laranja abandonado é
mais triste que a criança que o perdeu?
Ele que viu a alegria de uma festa
que fez parte da beleza dessa festa
agora é o que além de mais um pedaço de lixo?

De quem é o ar que carrega dentro de
si o balão laranja?
E se a pessoa que o encheu estivesse
vis-à-vis com a pessoa amada?
na certa esse balão estaria cheio
de suspiros também...
um relicário de suspiros de amor
dançando pelo chão sem cor
da avenida anoitecida.

Mas logo vai ser tarde e a rua vai
esvaziar dos carros e das pessoas e
nenhuma brisa de movimento vai soprar o
balão laranja e
ele vai ficar parado na sarjeta imunda
(porque no Centro todos os
cantos são imundos)
e vai murchar junto com as horas da madrugada.

O balão laranja vai amanhecer não mais balão
vai amanhecer um pedaço de borracha
(como um cadáver que amanhece exangue)
molhado de sereno a espera de um bueiro ou
de um cesto de lixo que o carregue.

O balão laranja dentro da noite vai saber que
mais felizes são os balões de gás que estouram
entre as estrelas do que ele que
depois da festa se esvaiu aos pouquinhos
entre o concreto e o asfalto frio de junho.

sábado, 13 de junho de 2009

Trânsito no Mundo


O ônibus é uma lata onde
tudo desafia a lei de que
dois corpos não podem ocupar
o mesmo lugar no espaço.

Se o ônibus batesse violentamente
seria uma massa horrenda de
carne e sangue espalhados por
todos os lados...
(tudo seria uno e indistinguível
como no carnaval)
mas seria bem trágico e bem
triste também:
porque no mundo haveriam então
menos alguns pais
menos alguns filhos
menos alguns namorados
menos uma garota bonita
(aquela no banco a minha esquerda)

O mundo nem se daria conta que
seria menos um poeta a andar sobre ele
se o ônibus batesse violentamente.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Olhar


A menininha encara o
vira-lata de rua que encara a
menininha
num olhar que vai para além da
linguagem
num olhar de sentidos secretos.
Porque a menininha quando
passa com seu olhar no
olhar do vira-lata lhe
deixa um carinho sincero e puro.
Porque o vira-lata quando prende
o seu olhar no olhar da
menininha é como se ele se
deixasse levar pela mãozinha dela
é como se ele tivesse finalmente
por alguns instantes
encontrado um lar.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Buda e o Lótus


O Verdadeiro amor nasce do profundo conhecimento das coisas amadas.
-Leonardo da Vinci

Solitária flor do tamanho
de uma palma de mão aberta
me encara balançando no
ritmo da brisa e
enquanto a observo por um
instante também sou a flor então.

Sentado ao sol desse quintal
entre flores e borboletas
(sendo as flores e as borboletas)
eu vejo a Fernanda no fundo
na sombra fazendo uma xilo e
vou desejando uma caneta e
um papel para escrever
qualquer coisa assim morna
assim tépida e calma como essa hora...

Mas ela se levanta e vem
flanando na minha direção
(leve e lenta como a manhã)
e sob o sol desse quintal
me dá um beijo e passa e
volta com um bloco e
uma caneta e um sorriso quase
mais claro que o sol:

-Um poeta tão calado não
pode ficar sem escrever!

E mais que o poeta que quando
enxerga e contempla se torna a
flor e a borboleta e o sol e o quintal
a Fernanda me mostra que só o
seu amor revela verdadeiramente
a unidade das coisas
e é só o amor que nos faz viver na
essência última do objeto amado.